ROTEIRO GERAL
A casa dos Ívolguin. Espaço exíguo, consciência oprimida. As brigas. A chegada de Nastássia Filípovna.
SUPEROBJETIVO
Aninhar Míchkin na casa de Gánia
(ou seja, na casa dos Ívolguin),
revelar o conflito familiar da casa
(casa dos Iepántchin: estabilidade, ainda que falsa;
casa dos Ívolguin: a periclitância absoluta);
fazer com que no “álbum de família”,
por conta de uma sineta emperrada,
Míchkin desempenhe o papel de Cristo Não-Revelado,
disfarçado de criado,
e depare-se cara a cara, pela primeira vez, com Nastássia Filípovna.
A casa dos Ívolguin é o extremo oposto da amplitude e da quietude (enganosa) da casa dos Iepántchin. É apertada, sublocada, um barril de pólvora. Quase uma casa de pensão, sustentada pelas mulheres, tanto no que se refere a dinheiro quanto a honra. Os homens, aqui, são fraquíssimos, e nessa fraqueza reside a sua beleza arrevesada.
O general Iepántchin pediu – na verdade, mandou, porque Gánia não tem poder diante desse general, que é a contraparte da decadência do general seu próprio pai – que Míchkin, simpático mas incômodo, se hospedasse na casa dos Ívolguin. Míchkin fica “no quarto do meio”, ou seja, entre o quarto de Ferdíchenka (atenção ao acento: é uma proparoxítona) e o quarto do general Ívolguin, vergonha absoluta da casa, que dorme com o filho pré-adolescente, Kólia, espécie de babá de bêbado. É a ausência do pai em presença, que ainda se mantém de pé por causa do filho mais novo e caminha pateticamente em direção à própria morte. O general Ívolguin tenta impor o limite, mas, não se dando o próprio limite, acaba sendo o palhaço que é.
Ao contrário das mulheres da casa das Iepántchin, que vivem no luxo do sem-tempo, na casa dos Ívolguin o tempo é de fato dinheiro: quartos alugados, muito álcool, treme-treme. Um puteiro – sem o tônus de um puteiro. Como se a grande mãe dessa casa, Nina Ívolguin, fosse a dona de um puteiro e quisesse ser madona de um mosteiro. Assim também Vária Ívolguin, a irmã de Gánia, que tem uma paixão rodriguiana pelo irmão: ama odiando. O incesto puro e certo. Tem ciúme do irmão, e ao mesmo tempo ódio da personalidade arrivista dele, que no entanto é gêmea da sua. É a casa dos conflitos, é a casa da consciência apertada, em que as mulheres acusam e condenam os homens com a justiça feminina, que não tem nada a ver com a lei dos homens, que não tem nada a ver com a lógica masculina. Aí moram os mandriões que freqüentam a casa de Nastássia Filípovna. Gánia é o seu modelo de fracasso. A casa dos Ívolguin é um antro que queria ser palácio, onde impera o fracasso da grande promessa que eram os homens.
Aqui, espaço = consciência. Aqui, luz = consciência. Aqui, figurino = consciência. Tudo aperta, ainda que largo.
Aqui é onde se dá a briga de família: Vária cospe em Gánia, Gánia esbofeteia Míchkin. A mãe aprova e desaprova o casamento de Gánia com Nastássia Filípovna. Álbum de família. Nastássia Filípovna faz uma visita à família do seu suposto noivo, toca a sineta quebrada, que não soa; é Míchkin, por acaso, que lhe abre a porta, e é confundido com um criado da casa. Mas a casa não tem criado. É um mito cristão: ser-se tomado como plebeu, sendo que se é rei. (A crueldade dos santos almejam isto: não nos reconheceram, agora se arrependerão. Todo casto é um obsceno, todo santo é um déspota, ainda que sem querer.)
Nastássia Filípovna é uma gigante dentro dessa casa-consciência apertada. O tom do figurino de Nastássia Filípovna é esse mesmo: inadequado, com o desejo de humilhar como quem precisa se defender, roupa de noite em pleno dia.
Ragôjan chega. No romance, com o seu bando. Aqui, sozinho. Ele vem como um lírico, e não como um épico. Ele vem como poeta, um Maiakóvski intempestivo, e não como um exército de beberrões. O leilão de Nastássia Filípovna acontece aqui: Ragôjan oferece a ela todas as possibilidades de dinheiro do mundo. E acaba dizendo que vai trazer mais. (Ragôjan daria de fato cem milhões de dólares por essa mulher, e não apenas cem mil rublos, como está no romance.)
O figurino de Ragôjan traduz a sua personalidade. Imagine-se um mujique, um camponês, um sertanejo, vestindo gravata pela primeira vez. Roupa de negócios cobrindo um coração selvagem. Docemente selvagem, mas selvagem. E apaixonado, em pleno cio. Ragôjan: a urbanidade desajeitando-se em alguém que é pura terra. O dinheiro é uma das poucas coisas modernas que lhe dizem respeito. Mas o seu dinheiro é um capital pré-capitalista, com o seu tanto de medieval: o ouro que pode comprar princesas. Uma criança que quebrou o porquinho e pensa que pode comprar o mundo.
A luz da casa dos Ívolguin. Ao contrário da luz dos Iepántchin, aqui não há lustres, e sim lâmpadas nuas, velas, abajures encardidos, resistências. Na casa dos Ívolguin não se paga a conta de luz, e as mulheres tricotam à luz baixa. Baixa, literalmente: as rugas e o desgaste do tempo ressalta nos semblantes. Espaço cansado, luz cansada. A luz pode faltar de fato, cenicamente, em determinado momento; na entrada do general Ívolguin, por exemplo, que se prontifica a acender uma vela.
Para a casa dos Ívolguin, não há nada específico em termos de música. Mas o tema da sineta é seminal. Durante toda a ação da casa, Nastássia Filípovna está tocando uma campainha emperrada. Todas as personagens podem ouvir de vez em quando alguma coisa tocar. É Nastássia Filípovna que ronda, e é a primeira aparição realista dessa personagem, e é o primeiro encontro ao vivo de Míchkin com ela. Mote musical “Tango russo” (“El sol sueño”), tocado magistralmente por Gidon Kremer, em homenagem a Piazzola.
(A cozinha do galpão da Companhia Livre, com todas as suas limitações e possibilidades, evoca, salvo engano, a casa dos Ívolguin.)
O figurino de Gánia destoa, mais uma vez, do ambiente em que age. Um plebeu vestindo a roupa roubada do rei. E a beleza melancólica de não se ajustar na própria roupa. Os Ívolguin usam roupas radicalmente diferentes da dele. Atenção especial ao general Ívolguin: tudo nele remete ao tempo de Napoleão (as primeiras décadas do século XIX) e a uma nobreza esfacelada. Assim como Gánia chama atenção pela sua janotice modernosa, o general Ívolguin, seu pai, destaca-se pela cafonice felliniana. Aliás, o general Ívolguin é digno de uma trilha felliniana. Grosso modo, a casa dos Ívolguin ganha muito em ser lida como uma casa italiana.
MOTES PARA OS ATORES
1) Gánia conduz Míchkin à sua casa. Como é essa entrada, como é essa condução?
Objetivo desta seqüência: revelar o portal da casa dos Ívolguin, onde Míchkin depara-se pela primeira vez com a família, o álcool, o dinheiro. E com Nastássia Filípovna.
Gánia é a primeira pessoa que chama Míchkin pelo título do romance. Quais são os mil e um sentidos subterrâneos da palavra “idiota”?
GÁNIA – Idiota!
MÍCHKIN – Você me chama de idiota. Eu sei que sou um idiota. Mas, se eu sei que sou um idiota, como é que eu posso ser de fato um idiota? O general Iepántchin me deu aqui vinte e cinco rublos, e ainda tenho o troco da passagem. Acho que com isso consigo me arranjar. Você não precisa me hospedar na sua casa.
O que Gánia responderia a essa serena recusa? Gánia precisa hospedar Míchkin, porque este foi indicado pelo general Iepántchin, de quem Gánia é secretário. Mas hospedá-lo significa apertar ainda mais o seu espaço-consciência.
2) Míchkin entra no seu quarto, que fica entre o quarto de Ferdíchenka e o quarto do general Ívolguin. Atenção para a estreiteza angustiosa do entre-lugar.
Objetivo desta seqüência: revelar que nos cantos mais escusos da casa dos Ívolguin moram os fantasmas da consciência de Gánia, ou seja, os vagabundos, os miseráveis, os outsiders que ainda vestem o fraque da dignidade, mas impedem-no, a ele, Gánia, de subir na vida.
A casa dos Ívolguin é povoada de inquilinos que sublocam os seus sub-cantinhos a sub-inquilinos. Deles há muito mais do que no romance. Nina Aheksándrovna a mãe de Gánia, não sabe ao certo, mas é dona de uma grande casa de pensão. Quem são os outros habitantes dessa casa de pensão: crianças pobres, prostitutas, alcoólatras, agiotas, assassinos? Raskôlnikov, o assassino protagonista de Crime e castigo, não moraria no quartinho do sótão?
MÍCHKIN – Como o senhor se chama?
FERDÍCHENKA – Não sei.
Míchkin desata a rir.
FERDÍCHENKA – Mas eu sei que o senhor é o príncipe Míchkin. Muito prazer, Ferdíchenka.
Míchkin morre de rir.
FERDÍCHENKA (muito sério) – O senhor tem dinheiro?
MÍCHKIN (estacando o riso e colocando a mão na carta que está no bolso interno do seu paletó, além de colocar a trouxinha no colo, como de praxe) – Tenho. Algum.
FERDÍCHENKA (despachado) – Deixe eu ver.
MÍCHKIN (tirando da trouxinha os vinte e cinco rublos que o general Iepántchin lhe deu) – Aqui. Vinte e cinco rublos.
MÍCHKIN (entusiasmado, enquanto Ferdíchenka examina a nota contra a luz) – O senhor sabe o que significa a palavra “rublo”? Rublo significa madeira. Antigamente o dinheiro era de madeira.
FERDÍCHENKA – Engraçado... É, madeira... Vinte e cinco rublos... Essas notas às vezes ficam marrons, às vezes ficam cinzas. (Pausa.) Essa, por exemplo, não é marrom – mas também não é cinza. (Embolsando a nota.) O senhor sabia que passarinhos também comem dinheiro? Enfim, príncipe, por favor: se eu lhe pedir dinheiro, não dê, porque – Deus é testemunha – eu vou pedir.
Entra em cena o general Ívolguin, que já espiava a conversa do seu cantinho, e arranca do bolso de Ferdíchenka a nota de vinte e cinco rublos.
3) O general Ívolguin apresenta-se a Míchkin como um grande amigo do pai do príncipe. E como grande amante da mãe do príncipe. A mentira absoluta com o máximo da fé cênica. A nota de vinte e cinco rublos continua flutuando no ar. Até que entra em cena Kólia, anunciando o almoço, ou melhor, anunciando que a Dona Nina quer falar com Míchkin, o novo hóspede da casa.
Qual é a história que o general Ívolguin conta a Míchkin?
4) Intermezzo: enquanto Míchkin se troca para encontrar Dona Nina, é assediado por uma prostituta. Ou por outra personagem que não está no romance. Quem é ela?
5) DONA NINA – Se por acaso o general lhe solicitar o pagamento do aluguel, diga a ele que já está tudo direitinho, que já acertou tudo comigo. O senhor tem algum dinheiro?
6) Gánia entra em cena. A sua relação com a irmã e com a mãe, ou seja, as figuras fortes da casa. O mote da fala de Gánia (que se casará, supostamente, com uma “madona de má-lapa”, só por dinheiro.) Como é esse Gánia-galã, oprimido por um capitalismo que ele mesmo inventou? Mas Gánia é garrido. A briga de família. Enquanto de um lado, oculto, o general enche a cara, a família estampa o seu álbum: é uma vergonha subir assim na vida, casando-se por dote. Melhor seria, como fazem as mulheres da casa, tricotar dignamente o dia todo. E Gánia quer atravessar a costura. “O dinheiro dá tudo, o dinheiro é generoso, o dinheiro dá até talento.”
7) A sineta emperrada até agora não parou de tocar. É Nastássia Filípovna lá fora, tomando há tempos o mesmo sereno de degelo que tomou Míchkin ao chegar a São Petersburgo. Enquanto a família briga (e como é essa briga?), Míchkin perde-se pelo espaço da casa de pensão e acaba desemperrando a sineta. E abre a porta a Nastássia Filípovna, que o confunde com um criado, semelhante ao criado com quem Míchkin conversou na casa dos Iepántchin. Como se dá esse primeiro encontro ao vivo entre os dois? Como o retrato vira realidade?
Vadin
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