desenho ricardo bezerra
a mundana companhia - completamente extasiada com a temporada realizada na Oswald de Andrade, a Oficina Cultural que comemora 25 anos - agradece ao público que brindou conosco nos dias de espetaculo. Agradecemos a todos do público que entraram e os que não entraram.
A carta de amor e as imagens, vindas do público - que seguem abaixo - , nos reforça e clareia, como relampago confirma, a trilha que esse time de jogadores percorre; a busca do encontro com o público não só na esfera do entretenimento mas para a ação do encontro mais profundo, teatro, rito...
Queridos atores de “O Idiota”,
Escrevo-lhes enquanto vocês encenam a peça agora, para outro grupo de pessoas, e imagino como estará hoje esse grande espetáculo, como estará o público, como será hoje cada cena que ontem pude sorver com tanta profundidade.
Saí ontem do teatro da forma que saio das grandes experiências que só a verdadeira arte pode oferecer. Há muitas ofertas numa cidade como São Paulo, não nos falta entretenimento, não nos faltam grandes espetáculos, shows concertos, mas sabemos muito bem que a arte verdadeira só acontece de vez em quando. Chamo de arte verdadeira um acontecimento que transforma o espectador, que deixa uma marca na vida dele porque, justamente, faz com que ele entre de uma forma e saia de outra. Chamo de arte aquela que nos tira do tempo, nos atravessa de forma a nos fazer esquecer das preocupações grandes ou pequenas que nos atormentam, nos travessa de forma a nos colocar num estado comum, coletivo, de alteração de consciência. Chamo de arte o que não necessita de texto explicativo para nos tocar a alma, nos arrancar de nosso egocentrismo, de nossa pequenez, de nossa surdez e ignorância, e nos arrebata de tal forma que nos tornamos todos uma coisa só, uma coisa que não sei como se chama, mas que une a cada um de vocês, a cada um dos envolvidos na produção (que gentilmente nos conduzem às salas, entregam-nos guarda-chuvas, ou nos deixam ficar um pouco mais perto da árvore onde o general acabara de morrer), à cada um dos espectadores. Essa arte eu amo! Essa arte me salva, causa-me orgulho de pertencer à raça humana, é a arte que me alimenta, que muda minhas palavras, que altera percepções, que tira-me da estabilidade questionando certezas, plantando perguntas e me aproximando do real sentido de estar viva.
Eu poderia escrever páginas e páginas para dizer tudo o que ainda está se revirando em mim, mas tanta coisa está em mim, ainda em pleno movimento e paixão, que algumas nem estão conscientes! Talvez nos próximos dias, meses, ou até anos, falando da noite que ontem passei com vocês, eu cada vez me surpreenda como novos insights e, mais uma vez, eu apenas confirme que a arte é um dos principais geradores da transformação humana. Esta arte, sim, é viva e nos tira da imobilidade que tanta vezes toma a nossa viciada inteligência.
Os cenários, as canções, o figurino, tudo veste lindamente o principal que é a profunda competência de vocês e o tesão com que interpretam. Há momentos em que ninguém interpreta e todo mundo é. Momentos sublimes como o da morte do general, com seu filho no colo. O que foi aquilo? O que foram os gritos de Kólia (e me lembro do Fred, quando menino ainda, embalando as noites em que eu assistia com meu filho maior o Castelo Rá-Tim-Bum), suas mãos cheias de afeto que passavam pelo corpo do pai? E o que dizer da absurda transformação do general debochado em ser humano completamente envergonhado, deixando suas mentiras de lado para confessar suas mais profundas dores!? O canto “alegre” de vocês todos depois desta cena não seguraram o meu choro, tanto que pedi à moça que me deixasse lá fora um pouco, sozinha, sem precisar conter a emoção que me tomava. Eu não queria engoli-la. Quando todos se foram, sentei no banco por alguns minutos - não no mesmo lugar onde morreu o general, pois jamais ousaria sentar-me no local sagrado daquela cena – e, naquela noite fresca, com o coração tomado, eu chorei de várias emoções.
Sou uma mãe que adora ser mãe, isso é fato, mas também foi a entrega dos dois, o despojar, o respeito que senti de todos vocês pelas cenas, o beijo do general na testa de Kólia, na verdade um pequeno instante de beijo de Luís na testa do Fred, uma fresta de afeto que escapava, (assim como no final da peça senti através do toque da mão de Sergio na mão da Luah), os seres que se emprestaram à cena, que se ofereceram a nós, e que por um segundo deixam escapar gestos e risadas, fazendo-nos transitar pelos vários estados de presença. A lista é imensa: Jesus nu e humano na escada, a troca das medalhas com as testas coladas, as reverências ao Idiota, o poema declamado por Aglaia pela segunda vez, com a decepção em contraste com a ingênua paixão da primeira vez que o recitou, Nastássia perguntando do que temos medo... os olhos de Sylvia, que nos entram na carne, aquele balde como uma ampulheta derramando o tempo em seu permanente correr diante dos nossos olhos, o cinismo de Vanderlei que nos traz um pouco de leveza, e o atormentado Gánia, consumido pela ganância, na desesperada tentativa de fugir de sua própria história familiar, o amor de Ragôjan se transformando em desespero, enlouquecendo, perdendo-se de si mesmo. E o Idiota... esse ingênuo mestre nos fazendo perguntas, nos ensinando o que sempre esquecemos, fazendo-nos nos sentir a nós como os verdadeiros idiotas.
“De novo,
como se vê acima,
não há perguntas mais urgentes
do que as perguntas ingênuas”
(Wiislawa Szymborska – poetisa polonesa, prêmio Nobel de literatura).
Eu lhes agradeço pela noite de ontem. Eu estava exausta pela semana que tive e não senti cansaço, não senti sono, só sentia fome de ver mais, desejo, vida pulsante. É assim que eu quero viver a vida, sempre me lembrando como é bom estar inteira, atravessável, porosa, afetável, impermanente. Obrigada pelo banquete. Obrigada pelo seu sacerdócio. Pelo seu tesão, pela sua entrega, por terem me dado uma noite inesquecível.
Um beijo a cada um de vocês, incluindo o músico, preciso, presente; à grande Cibele, com quem convivi na infância nos anos de Vera Cruz, e à querida Lúcia, que sempre me chama para as coisas imperdíveis
Andréa
as imagens são de ricardo bezerra
segue o link pra conhecer outros desnehos dele
www.rbezerra.art.br
isso para nós agora é a felicidade
até a volta de CURITIBA!!!!
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