em breve O DUELO !

em breve

O DUELO
de Tchekov

direção Georgette Fadel

mundana companhia


link para Pais e Filhos
http://paisefilhosteatro.com/
conheça o processo de montagem

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Matéria de Jefferson Del Rios e réplica de Aury

Entre os humilhados e os delirantes
Cibele Forjaz encena o vasto O Idiota, de Dostoievski, em três partes que alternam acertos e despreparos
17 de abril de 2010 | 0h 00
Jefferson Del Rios
- O Estado de S.Paulo

http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100417/not_imp539433,0.php

Adaptar e teatralizar as 600 páginas do romance O Idiota, de Fiódor Dostoievski, é operação de risco. Não é pouca coisa dar imagens e vozes à jornada existencial do Príncipe Michkin visto como um perturbado risível ao não perceber os jogos de poder, dinheiro, sexo e conveniências numa São Petersburgo czarista, violenta e corrupta.

O confronto entre as forças da compaixão e da beleza, de um lado, e a de mentes sombrias, do outro, domina cada linha do enredo. O leitor devotado ao escritor russo (1821-1881) poderá estranhar a falta das nuances do original, mas quem estiver disponível para alternativas terá recompensas.

O dado foi lançado pela diretora Cibele Forjaz à frente de intérpretes vindos de vários grupos paulistanos. Realizou um trabalho designado às vezes como performance ou a busca da representação para além dos limites convencionais, sobretudo a do palco italiano. Outra relação com o público, agora não mais visto como a habitual plateia apenas observadora e silenciosa. Uma arte que incorpora a realidade externa ao trazer para dentro (ou para fora) do palco a aspereza das ruas, a crise das pessoas, a entropia das cidades convulsas. Quem se interessar por tais ideias lerá cuidadosas análises em Teatralidades Contemporâneas, da ensaísta Sílvia Fernandes (Editora Perspectiva, 243 páginas).

A encenadora apegou-se ao caráter folhetinesco do romance, que divide o enredo em ondas de tensão para segurar o leitor até o próximo acontecimento inesperado. Recurso que, ao longo do tempo, rendeu obras-primas ao lado de bastante literatice, e que permanece nas telenovelas atuais. A diferença límpida é o fato de Dostoievski ser genial. Sua obra extensa é tão abrangente que nela ecoa quase tudo, da história social às antevisões psicanalíticas. De tamanho talento é difícil falar de outra maneira. Seus personagens são "possuídos", entendendo-se por isso atitudes causadoras de crime, loucura e auto-aniquilamento (junto com a ânsia de redenção). Alguns títulos dispensam explicações (Humilhados e Ofendidos, Recordação da Casa dos Mortos, Crime e Castigo). A Editora 34 lançou traduções diretamente do russo por Paulo Bezerra, dentre eles Os Irmãos Karamazov e O Idiota (adaptado aqui por Aury Porto).

Ângulos. A montagem - a ser vista parcialmente ou inteira em três dias sucessivos - quis ser uma polifonia ao expor ângulos diferentes dos personagens, ora com intensidade próxima ao exagero, ora em deslocamentos ao longo de um galpão com vestígios da fábrica que foi no passado, arranjos cenográficos de impacto (uma linha de trem desdobrável em espelho d"água), refinamento poético nas luzes e na música, e, sempre, atuação veloz e sôfrega. Há momentos realmente bonitos e surpreendentes, outros refletindo a precariedade pontual da interpretação.

Preço. A primeira parte, ágil e colorida, conduz o público por três espaços. Na segunda, com trechos dialogados semi-estáticos, o rendimento é afetado, mas na terceira a invenção torna a brilhar. Cibele Forjaz sustenta elevado padrão estético, embora, ocasionalmente, opções de direção cobrem seu preço. Há um dado estranho na abordagem da batalha de sexos, absolutamente clara no romance. A atitude das atrizes Luah Guimarãez, Lúcia Romano e Sylvia Prado tem um ardente clima feminino, enquanto nas interpretações masculinas (à exceção do personagem Ragôjan, de Sérgio Riviero, ainda que com quedas de articulação) predomina certo tom amaneirado nas falas, gestos e olhares. Se a intenção é de sátira e/ou deboche, ela resulta deslocada. Em outra situação, Aury Porto, ator expressivo e simpático, oscila entre o jocoso e uma modéstia de cordel quando, na realidade, deve encarnar O Príncipe. Com um dossiê explicativo de qualidade, a peça alça voo sempre que capta a chama de Dostoievski. Felizmente é o que prevalece sobre tropeços possíveis de evitar. Ao final, O Idiota reflete a audácia dos que lhe deram vida sob os refletores.

Sesc Pompeia. R. Clélia, 93. Parte 1 (180 min): 3ª e 6ª, 20h. Parte 2 (120 min): 4ª, 20h; sáb., 19h. Parte 3 (120 min): 5ª, 20h; dom., 19h. R$ 16 (cada parte). Até 9/5.

-----------------------------------------------------


DOSTOIÉVSKI, NO MEIO E DENTRO DE NÓS


Ao ler a crítica de Jefferson Del Rios ao espetáculo “O Idiota – Uma Novela Teatral”, intitulada ENTRE OS HUMILHADOS E OFENDIDOS, publicada no dia 17 de abril de 2010 no Caderno 2 do jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, discordei em alguns pontos, sobretudo, em um ponto que me diz respeito diretamente, mas que ao mesmo tempo não considero uma questão estritamente pessoal. É, a meu ver, questão exemplar. Então, resolvi escrever essa réplica.

Tratarei aqui da passagem em que o crítico se refere à minha interpretação para o príncipe Míchkin. Assim ele escreveu:

“Em outra situação, Aury Porto, ator expressivo e
simpático, oscila entre o jocoso e uma modéstia de cordel quando, na realidade, deve encarnar O Príncipe.”

Considero que a apreciação do meu trabalho nesses termos tem raízes mais obscuras. Ela pode vir daqueles lugares recônditos aos quais os homens que se nomeiam orgulhosamente como civilizados tremem de medo de tocar: o “pré-conceito”. Um preconceito bem sutil, mas muito meu conhecido. O preconceito de origem. Sempre me esforço para esquecê-lo quando passo por ele, mas nunca o ignorei e muitas vezes o pressenti. E eu já passei por ele muitas vezes nesses vinte e dois anos de vida na cidade de São Paulo. Cidade que eu escolhi pra viver por vontade própria e que amei no primeiro dia através das árvores da Avenida Rebouças e do frio leve que batia naquele feriado de Nossa Senhora Aparecida. Pois o que acontece é que no teatro há tanto preconceito com a origem do que se chama genericamente de nordestino quanto em qualquer outro segmento social.

Sou sertanejo, nascido no campo, a cem metros de um engenho de rapadura, no município de nome Lavras da Mangabeira, localizado no limite entre o Cariri e o Sertão Central do Ceará. Desse lugar saí há muitos anos, mas lá eu vivi os anos fundamentais da vida de um homem, os primeiros sete anos. E é de lá que meu Míchkin vem quando chega da Suíça no começo da peça. O jumento que eu escuto e que tira Míchkin da letargia em que ele se encontrava depois de uma série de ataques, vive lá no Ceará. Foi lá que eu tive a única convulsão de toda a minha vida aos três anos de idade. Foi lá que eu ouvi meu avô paterno semi-analfabeto recitar de cor todos os versos do cordel da “História do pavão misterioso”. O mesmo avô que dizia em tom jocoso que ninguém precisa de duas roupas se só tem um corpo. Lá, na minha “Suíça canicular” eu tinha outro avô que usava cotidianamente camisas de mangas longas brancas e calças de tons pastéis e tinha pés muito arqueados e de ossos bastante salientes. A figurinista Joana Porto vestiu Míchkin com tons pastéis e deixou certos pés idênticos aos do meu avô à mostra. Pés que só são cobertos quando Aglaia ordena que Míchkin o faça para agradar uma elite que põe reparo em tudo e que não vê nada. E como Míchkin está apaixonado por ela como um gato (palavras do personagem Ragôjan), ele faz o que sua gata mandar. Míchkin pega ondas, vai vivendo, vai amando, de coração aberto, idiotamente...

Míchkin é um príncipe sem trono. Como ele mesmo diz no primeiro capítulo de nossa história: “Eu e minha prima Lizavieta somos os últimos da linhagem. Os Míchkin já não existem há tempos”. Ser Míchkin é estar deslocado, desenraizado. Mas também é estar no mundo todo porque o mundo é onde estamos e, nunca, antes, na história da humanidade, estivemos tanto na Terra toda quanto agora. Ou seria melhor no sistema solar? Sim, porque nesse exato momento há homens vivendo no espaço sideral.

O principado de Míchkin é da alma e do coração, não é da forma nem da aparência. No romance, assim como na adaptação, por mais de uma vez os personagens dizem entre surpresos e debochados quando são apresentados a ele:

- “Príncipe?! O senhor é príncipe?”

Ou noutra passagem quando lhe pedem uma opinião:

- “Mas... O que é o príncipe?”

O principado de Míchkin é sertanejo porque Míchkin sou eu, e eu sou onde eu estou. E como Míchkin está na roda, ele é todo mundo que ousar entrar em contato com ele em si.

O crítico se refere a mim como um ator simpático. Fui realmente simpático ao responder a uma questão que ele me pôs inconvenientemente durante uma sessão de apresentação da terceira parte da peça.

Aproximei-me dele para contracenarmos, e pus em suas mãos uma faixa de gaze pra que ele a colocasse na cabeça de Míchkin que havia sofrido um ataque epilético na parte anterior da peça, como ele mesmo presenciou. Aconteceu que ele, um crítico de teatro, totalmente sem jeito para um simples jogo dramático, resolveu falar comigo e me disse:

- “Um Míchkin pernambucano!?”

Assim mesmo, entre exclamativo e interrogativo. E com uma delicadeza estudada de salão.

A essa questão descabida para o jogo proposto eu respondi, depois de controlar minha irritação:

- “Não. Cearense. Do Carirí.”

Essa montagem teatral, como muitas outras que têm acontecido nos últimos anos nos teatros da cidade de São Paulo, pede interatividade sagaz do espectador com a obra, conexão dentro da situação dramática. Não pede esse tipo de conversa de coquetel.

Mas se, ao invés da simpatia do ator, ele tivesse entrado em contato com a empatia que o personagem tem causado em tantos espectadores ligados na poesia, teria visto minha interpretação com outros olhos e teria tido a chance de dialogar com o mundo do pavão misterioso no qual a heroína é uma Condessa chamada Creuza. Ou seria esse o nome de alguma doméstica migrante do Nordeste que limpa uma casa paulistana nesse momento?

Míchkin, que significa ratinho, à primeira vista é tratado por Nastássia como um serviçal para depois ser amado por ela como um “nobre de verdade” em oposição aos nobres de título que ela conhecera. Em erro similar caíram aqueles que não viram em Jesus, o Príncipe dos Céus. O paralelo, como sabido, não é mero acaso.

O romance de Dostoiévski, assim como a peça, se chama O IDIOTA, com todas as letras maiúsculas. O Príncipe, assim mesmo como está escrito na crítica é outra história, de outro autor.

Nada mais antiquado do que tentar apreender uma obra artística com um pensamento cultural centralizador. No universo da cultura não há centro. Isso de centro e periferia é coisa de geometria que serve muito à economia capitalista.

Por isso considero uma cegueira do crítico caracterizar um desempenho de cordel como algo desprovido de realeza.

Como diz Míchkin: “Primeiro é preciso não compreender muita coisa...”

O cordel é uma literatura popular das mais refinadas que a humanidade criou.

Ademais, a nossa leitura dos personagens, como de toda a história é alegórica, não é realista. Eu não sou loiro, como na descrição que o autor faz do personagem no livro, e não pintei meu cabelo, conscientemente.

O crítico trata Dostoiévski como gênio, mas soa abstrato, cheio de deferência. Dostoievski é genial sim, mas é um gênio quente. E assim como ele amava o Cristo vivo nós o amamos em nossos corpos e não no que ele foi. Ele está dentro e no meio de nós.

Quando todos o detestavam, Míchkin, o príncipe pobre e idiota, chegava a uma compreensão sobre os homens de uma generosidade nobre e ímpar: “Não há nada de homens atrasados e maus, mas uma matéria toda viva.”

Por um triz, o crítico que conviveu conosco por três noites consecutivas, quase se viu um idiota. Ficou preso a velhos preceitos e perdeu essa oportunidade. Mas, a matéria está viva. Ainda.



Aury Porto

São Paulo, 19 de abril de 2010.

Dia do ÍndioTA (Essa referência está na peça. Delicadamente.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário


Total de visitas